domingo, 31 de março de 2019

Lei do passe escravizou o meia Eudes


 Atribui-se à Lei Pelé o estado de insolvência de clubes interioranos, pois deles foram tirados - como formadores de jogadores - direitos integrais de vendas de passes, que garantiam sobrevivência. Quando da promulgação da lei 9.615, de abril de 1998, justificava-se o término do processo de escrivão do atleta, então aprisionado ao clube detentor do passe. Todavia, agora o que se vê é o fatiamento entre familiares do atleta, empresários e pequena parcela ao clube.

 Aprisionamento de atleta durante a vigência da lei do passe ficou bem caracterizado na passagem do meia Eudes Lacerda Medeiros pela Portuguesa no final dos anos 70. Durante renovação de contrato, propuseram-lhe proposta indecorosa, com justificativa de que não havia se firmado como titular, ignorando que seguidas idas à seleção olímpica do Brasil tiraram-lhe titularidade no clube.

 Com rejeição da proposta e liberdade tolhida no elenco, o jeito foi Eudes se refugiar em Lorena (SP), sua cidade natal, se remoer durante dois meses, até se resignar, retornar ao Canindé, e aceitar as bases oferecidas. Se apoiou na confiança transmitida pelo saudoso ponteiro-direito Julinho Botelho - na época treinador da base da Lusa -, que o descobriu para o futebol, e assim acreditou que a perda financeira poderia ser recuperada na sequência.

 Eudes julgava que o saudoso treinador Oto Glória priorizava jogadores como Rui Rei, Enéas, Alexandre Bueno e Tata, e só teve percepção que ganharia lugar no time com a chegada do sucessor Urubatão Calvo Nunes, que o incentivou a ratificar dribles curtos em progressão e visão privilegiada de jogo. Assim, ele estraçalhava em treinos e jogos.

 No Cruzeiro, em 1981, atuou num time formado por Gomes; Chiquinho, Zezinho Figueroa, Ozires e Luís Cosme; Douglas, Eudes e Tostão; Carlinhos, Mauro Madureira e Edu. Foi quando chegou a seleção principal, mas dois anos depois começou repasse de clubes como Operário (MS) e outros pequenos do interior paulista: Comercial (RP), Inter de Limeira, Noroeste e Rio Branco de Americana.

 Hoje, aos 64 anos de idade, sem a barba rala de outrora e inevitável queda dos cabelos, está radicado em Lorena e trabalha em escolinha de futebol da prefeitura local.

domingo, 24 de março de 2019

Adeus ao lateral-esquerdo Airton


 A morte neste 23 de março do então lateral-esquerdo Airton Ravagniani, aos 59 anos de idade, campeão paulista pelo São Paulo em 1980, nos remete às intermináveis discussões sobre gargalos enfrentados por pacientes vítimas de câncer, que dependem do SUS (Sistema Único de Saúde). O ex-são-paulino não resistiu a enfermidade que atacou intestino e fígado.

 Vigora, desde maio de 2013, lei que prevê a paciente diagnosticado com câncer tratamento em no máximo 60 dias. Todavia, persiste desobediência à Constituição de 1988, quando cita como dever do Estado garantir Saúde a toda população. É que o citado prazo não tem sido rigorosamente respeitado até no Estado de São Paulo, que oferece as melhores condições de atendimento no país.

 Além disso, paciente inserido no SUS - como foi o caso do lateral Airton - enfrenta filas para agendamento até na passagem inicial com o clínico geral. Aí, em caso de suspeita da doença após exames laboratoriais de praxe, é feito o encaminhamento ao oncologista, geralmente em filas ainda maiores.

 Quando do diagnóstico de câncer, dois meses de espera para início do tratamento - cirurgia, quimioterapia e radioterapia - podem ser tardios no enfrentamento da doença. E esse foi o caso de Airton, que em março do ano passado passou a se queixar de infecção urinária. Posteriormente enfrentou jornada desafiadora, visto que não contava com plano de saúde.

 Passagem marcante de Airton como atleta foi no São Paulo, com 90 partidas, caracterizado como marcador. Ele atuou num time formado por Waldir Peres; Getúlio, Oscar, Dario Pereyra e Airton; Almir, Renato e Heriberto; Paulo César, Serginho Chulapa e Zé Sérgio. Depois, com a chegada de Marinho Chagas, Airton foi jogar no Flamengo e ainda passou por Grêmio (RS), Sport (PE), América (RJ), Avaí, São Caetano e Paulista de Jundiaí, ambos de SP.

 Airton nasceu na capital paulista, morava em Rio Claro, e antes de adoecer conduzia a sua escolinha de futebol para garotos. Amigos de clube até organizaram jogo beneficente para ajudá-lo no custeio da doença, e por fim a internação em hospital de São Carlos, onde morreu.

domingo, 17 de março de 2019

Adeus a Coutinho, o homem gol


 Lembra-se desse time santista: Laércio, Zé Carlos, Mauro, Calvet e Dalmo; Zito e Mengálvio; Sormani, Coutinho, Pelé e Pepe, que sagrou-se campeão paulista de 1960? Foi quando Coutinho começou a escrever uma história de 370 gols no clube, superado por Pepe (405 gols) e Pelé (1.091 gols).

 Vítima de enfarto, Coutinho fez companhia a Laércio, Mauro, Calvet, Dalmo e Zito no time do céu. Por antever jogadas, fez perfeita dupla de área com Pelé, mas fora dos gramados tiveram as suas diferenças, tanto que eles ficaram relativo período incomunicáveis.

 A tabelinha bem sincronizada foi a responsável pela encrenca. Uma empresa se dispôs a gravar um comercial com a dupla, ofereceu ‘grana preta’ para ambos, Coutinho aceitou na hora, mas Pelé endureceu. Exigiu o triplo do valor oferecido, e não houve acordo. Logo, Coutinho perdeu dinheiro e ficou indignado. E quando reataram o relacionamento, Coutinho só falava o estritamente necessário.

 Couto - como era identificado pelos amigos - falava com a autoridade de quem teve reduzido índice de erros nos tempos de jogador. Seus amigos mal se lembram quantas vezes ele chutou bola sobre o travessão, tamanha frieza e precisão nos arremates.

 Nada de chutes fortes. Apenas deslocava a bola do goleiro, indistintamente com quaisquer das pernas, quando ficava cara a cara com o gol. Cabeceio? Nem pensar. Pela objetividade e sem que fosse exímio driblador, barrou o talentoso Pagão no time santista.

 Ele integrou a Seleção Brasileira bicampeã de 1962, no Mundial do Chile. E até 1965 brilhou com a camisa nove do Santos, deixando-a ao saudoso Toninho Guerreiro. Paradoxalmente, o gol mais bonito na carreira de Coutinho foi anulado sem justificativa: de bicicleta, contra o Benfica (POR), na vitória por 5 a 2, em Lisboa, resultado que significou a conquista de Mundial Interclubes do Santos em 1962.

 Revelado pelo XV de Piracicaba (SP), Coutinho mostrou impaciência na curta carreira de treinador, ao se irritar com erros grotescos de atletas, e isso provocava desarmonia nos elencos. Para exemplificar a intolerância, se eventualmente um jornalista lhe perguntasse aquilo que achava de tal gramado, a resposta seria que nunca comeu grama para saber o sabor.

domingo, 10 de março de 2019

Amaral protagoniza deliciosas histórias no futebol


 Quem se dispuser a fazer narrativa sobre o volante Amaral, que fez sucesso no Palmeiras, Corinthians, Vasco, Grêmio, Atlético Mineiro e Seleção Brasileira, obrigatoriamente tem que priorizar o estilo bonachão dele fora de campo. São incontáveis histórias que passam pela culinária da Indonésia, quando, desinformado, confessa ter degustado carne de rato em vez de filé de frango.

 Naquele país asiático Amaral jogou no Monado United e Persevaya, passou pela Turquia, enquanto no Japão, durante amistoso do Palmeiras, ficou perplexo com reação de massagista adversário que jogou água em seu olho caído, em vez socorrê-lo de pancada recebida no tornozelo.

 Semianalfabeto confesso, Amaral não se constrange com as derrapadas. No auge da carreira em 1995, na passagem pela Seleção Brasileira, em jogo na África do Sul, perguntaram-lhe sobre o regime apartheid, e a resposta entrou para os anais do futebol: “Se for jogador perigoso, vou fazer marcação individual sobre ele”.

 Por onde passou Amaral deu ‘bola fora’, e se diverte das trapalhadas. Ao ingressar na base do Palmeiras em 1992, foi solicitado que colocasse seu nome em tubos com coletas de urina e fezes, dos exames obrigatórios. “Aí eu escrevi xixi e cocô”.

 Todavia, ainda no Palmeiras, foi ‘zoado’ pelos companheiros quando, após jogo em Recife, os convidou para diversão no ‘Forró do Gerson’. Amaral confundiu alhos com bulhados, pois a fila vista no local indicado referia-se à loja de forro e gesso.

 No gramado, Amaral foi um marcador implacável, mas sempre será lembrado pelo drible elástico que o ex-atacante Romário lhe aplicou, com desfecho do lance em gol, quando o volante defendia o Corinthians em 1999. Dois anos antes começou seu vaivém Brasil-Europa, com extrema dificuldade de adaptação no velho continente, nas passagens por Itália, Portugal e Polônia.

 Embora não haja semelhança com o consagrado quarto-zagueiro João Justino Amaral dos Santos, do Corinthians, o apelido de Amaral colou no capivariano Alexandre da Silva Mariano, que em fevereiro completou 46 anos, e foi no clube de sua cidade, há quatro anos, que encerrou a carreira de atleta, com lembranças da infância quando prestava serviço em funerária. Ele preparava corpos para sepultamento.

segunda-feira, 4 de março de 2019

Sidney Trancinha, irreverência minou o seu futebol


 Irreverência, dentro e fora de campo, foi marca registrada de Sidney José Tobias, um piracicabano que fez parte da história dos ‘Menudos do Morumbi’ nos anos 80, com a camisa do São Paulo, atuando como ponteiro-esquerdo. Na relva foi um tormento para laterais-direitos adversários com dribles estonteantes, velocidade e precisos cruzamentos, que fizeram dele garçom de artilheiros nos primeiros três anos de clube.

 Fora dele a confissão de atleta rebelde que se caracterizava na bem-humorada brincadeira para justificar modificação de fisionomia: “Acho que perdi os cabelos de tantas broncas que levei do Cilinho (ex-treinador)”, nos tempos de São Paulo.

 Explica-se: recém profissionalizado à época, mirou-se no cabelo de trancinhas estilo afro, adotado pelo cantor Gilberto Gil, e o copiou. Daí o apelido de Sidney Trancinha. Também usava roupas coloridas, extravagantes, e fazia-se de surdo quando repreendido por membros da comissão técnica e dirigentes por ‘pilotar’ moto, cultivar a vida de boêmio, e se revelar quando substituído ou perdia condição de titular. “Se o jogo fosse no domingo, na sexta-feira o treinador Pepe já pedia para que eu maneirasse”.

 Sidney Trancinha foi partícipe do inesquecível time são-paulino vocacionado ao ataque, com Muller, Silas, Careca e ele, coadjuvados pelos meio-campistas Márcio Araújo e Pita, com seguidos avanços dos laterais Zé Teodoro e Nelsinho. Isso era possível devido à pontuais coberturas dos zagueiros Oscar e Dario Pereyra, no título paulista de 1985, e algumas adaptações no ano seguinte, na conquista do Brasileirão.

 Em seguida, com a contratação do ponteiro-esquerdo Edivaldo, do Galo mineiro, Sidney esbravejou com a reserva no time são-paulino. E, ao se transferiu por empréstimo ao Flamengo, criticou o seu ex-clube de ‘supercareta’, e prometeu não mais ser rotulado de ‘criador de casos’.

 Na prática, inconformado com a reserva no rubro-negro, teve duas novas chances de se redimir no Marítimo (POR) e Santos, mas não as aproveitou. Aí a trajetória foi em equipes de menor conceito técnico, até encerrar a carreira no Paraguaçuense em 1996.

 Hoje, aos 54 anos de idade, lamenta ter perdido espaço até na Seleção Brasileira por insubordinação, e torce pelo sucesso no futebol do filho Vinícius Kiss, meia do São Caetano.